A rosa do povo: o indivíduo na modernidade

A rosa do povo: o indivíduo na modernidade

Júlio César Suzuki

[...] Essa viagem é mortal, e começá-la. Saber que há tudo. E mover-se em meio a milhões e milhões de formas raras, secretas, duras. Eis aí meu canto. (ANDRADE, 2002, p. 22)

A modernidade imprimiu uma aceleração do tempo (BERMAN, 1986). A velocidade com que se dão os processos de deslocamento das informações, das pessoas, das mercadorias, bem como aqueles relacionados à dinâmica social, teve um aumento considerável, se levarmos em conta as necessidades temporais necessárias durante a Antiguidade e o feudalismo para situações similares, porém não idênticas.
A modernidade impactou a constituição do indivíduo e de sua fragmentação, particularmente na cidade, o que se expressa densamente em A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade.
É no contexto de transformações temporais, marcadamente sociais, econômicas e políticas, que se constituem o indivíduo e a cidade moderna. Paradoxal é o quanto a definição do indivíduo revela de seu próprio esfacelamento. No momento em que o homem é definido como ser em separado dos demais, passa a ser necessário constituir um campo do saber para tratar dos problemas que dificultam a manutenção da individualidade, do qual participam a Psiquiatria e a Psicologia.
É exatamente na cidade moderna que esse indivíduo é mais marcado pelo esfacelamento. É onde o poder de transmissão de uma mensagem que seja útil aos outros se torna cada vez menos comum. Segundo Walter Benjamin (1985, p.202), em “O narrador”, a arte de narrar está em vias de extinção. A narração, como uma das formas de manutenção do discurso fundado na experiência, deu lugar ao romance que está sendo substituído pela informação (a nova forma de comunicação). Na transição do predomínio da forma narrativa para a romanesca, dá-se a desvalorização da experiência, sobretudo a daqueles que vêm de longe e a daqueles que passam uma vida toda sem sair de seu país, principalmente o marinheiro comerciante e o camponês sedentário (BENJAMIN, 1985, p.198-9), para o caso europeu. No romance, passa-se a valorizar “[...] o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los [...]” (BENJAMIN, 1985, p.201).
Theodor W. Adorno, em diálogo com Walter Benjamin, indica-nos que não é possível, no entanto, entender a perda da narratividade como algo absoluto. Em última instância, o que se vive é um paradoxo, pois “[...] não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração [...]” (ADORNO, 2003, p.55).
A compreensão do que é valorizado no romance está presente, também, na discussão de Ian Watt, particularmente quando afirma que, no romance, o “[...] principal critério era a verdade em relação à experiência individual – experiência individual sempre única, e por isso nova [...]” (WATT, 1984, p.19), rejeitando os universais (WATT, 1984, p.17), ou seja, experiências que retratam as práticas sociais de uma coletividade que permitiriam a conformação de um conceito abstrato de referência sobre os sujeitos históricos e seus enfrentamentos cotidianos. A narração, ainda, possui um sentido stricto na teoria literária, colocando-se lado a lado com a descrição, o diálogo e a dissertação. “Nesse caso, a narração consiste no relato de acontecimentos ou fatos, e envolve, pois, a ação, o movimento e o transcorrer do tempo.” (MOISÉS, 1992, p.355)
Assim, não é narrativa que teve fim. Ela foi metamorfoseada, por meio de liames finos tecidos em relação à própria mudança do mundo, em narrações que recuperam a fragmentação das experiências possíveis que uma voz narrativa pode transformar em universais. Mas não em uma universalidade plena que permita a incorporação de todos os elementos da trama social e de todas as suas normas e sentidos, mas aquelas que puderam ser reunidas, vivenciadas, traduzidas.
De qualquer modo, o que nos interessa é o movimento paradoxal de constituição do indivíduo e de seu esfacelamento na modernidade, sobremaneira na cidade. Nesses termos, pretende-se, com base na obra A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, analisar a mediação construída entre o poeta e a cidade, na leitura do esfacelamento do indivíduo, especialmente levando em consideração o momento de final da Segunda Guerra Mundial, o qual marca a escritura da obra, portanto de descrença muito forte e de reconstrução da utopia.
A voz lírica que aparece nos poemas de A rosa do povo incorpora densamente as experiências de um intelectual que vive um momento complicado da modernidade, sobretudo o que revela o quanto as promessas de ordem e progresso, tão apregoadas pelo positivismo e pelos regimes totalitários, não dariam conta de produzir uma sociedade fraterna, libertária e igualitária, para lembrar os termos universais da Revolução Francesa. É um tempo em que as promessas de progresso, advindo da modernização técnica utilizada na indústria, não chegaram à população em geral nas grandes cidades, locus prioritário de instalação das plantas produtivas fabris. Mas é uma voz lírica que supera, em grande medida, os limites da individualização. É uma voz do “sujeito social coletivo”. É uma voz que traduz muito do que se passa por dentro dos sujeitos históricos de uma sociedade moderna marcada por tanta desigualdade, em que os tempos de transformação espacial e de adequação cultural não se coadunam. É uma voz que marca, contundentemente, a experiência de vítima em que se inserem esses sujeitos perdidos no movimento de uma modernidade que não garantiu sentido para suas vidas.
O mundo constituído em uma unidade compacta não pode mais ser apreendido. Os homens sociais não vivem experiências similares que lhes permitam a construção da mesma interpretação do todo. São fragmentos que vão delineando aproximações possíveis de construção e de reconstrução do todo social. São aproximações que denunciam a impossibilidade de se alcançar uma unidade que permita entender seus liames mais finos e construir um sentido para a vida, bem como entender o significado das ações para o alcance da construção que se almeja. O sentimento que se estabelece, então, é o de impotência, em um mundo estranho, incompreensível.
Em A rosa do povo, a dificuldade de narrar já está presente até mesmo no que concerne ao ponto básico da própria narratividade: a linguagem. São formas múltiplas que guardam segredos, sutilezas, sentidos, pelos quais o poeta terá que construir a poesia:

“Essa viagem é mortal, e começá-la. Saber que há tudo. E mover-se em meio a milhões e milhões de formas raras, secretas, dura. Eis aí meu canto.” (ANDRADE, 2002, p.22)
“ Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?” (ANDRADE, 2002, p.25-26)

O discurso metalingüístico, presente nos primeiros poemas de A rosa do povo, revela a dificuldade de expressar, em linguagem, as múltiplas formas em que se expressa a vida multifacetada e fragmentada no tempo da modernidade, sobretudo na cidade, pois o canto, a poesia, já não é o movimento do real em si; é algo que dele se desprendeu, mas sem o poder de estabelecer todos os liames, sem reconstruir todas as suas múltiplas faces.
Os poemas de A rosa do povo, ainda, guardam, em diversas passagens, o quanto o sujeito de onde parte essa voz lírica está perdido. Os sentidos da vida não são mais decifráveis.

“Em vão me tento explicar, os muros são surdos.” (ANDRADE, 2002, p.27)

“Uma flor nasceu na rua! [...]
forma insegura.” (ANDRADE, 2002, p.28)

“Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho. [...]

Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém,
ou se algo contém,
nunca saberei. [...]

Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar. [...]

Por que não me dizes
a palavra dura
oculta em teu seio,
carga intolerável? [...]

Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.” (ANDRADE, 2002, p.29-32)

Nesses trechos, há sempre a mensagem de algo que não se conhece dentro de nós. É um destino que nos carrega. Um sentido que nos orienta, um segredo que não é possível decifrar, mas que, mesmo nos angustiando, acalenta-nos, pois nos acompanha.
Essa é, em grande medida, a mensagem presente no poema “O medo”, a de que somos seres desconhecedores do sentido de nossas vidas, para os quais há o medo como perspectiva: o medo do desconhecido.

“Em verdade temos medo. [...]
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos. [...]

Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.” (ANDRADE, 2002, p.35-37)

É o medo perpassando a vida mais imediata, a na cidade em que vivemos, também, a mais longínqua, a no mundo, também a vida presente em nossos sonhos, a nas estrelas. Mas, não há, em A rosa do povo, poema mais expressivo para revelar o quanto esse indivíduo com sentidos enigmáticos vive esfacelado do que o poema “Nosso tempo”:

“Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos. [...]
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos. [...]

Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.” (ANDRADE, 2002, p.38-9)

São indivíduos que vivem em cidades, as quais eles pouco conhecem. Por isso, esse espaço social é para eles enigmático, indecifrável.

“Vejo-te no escuro, cidade enigmática” (ANDRADE, 2002, p.149)

“Essa cidade oculta em mil cidades” (ANDRADE, 2002, p.172)

É o espaço em que a modernidade atingiu de maneira mais contundente o indivíduo, deu-lhe unidade e o esfacelou. A modernidade transformou o sentido da família, de extensa para nuclear; dirimiu o poder das tradições, sobretudo pela velocidade com que metamorfoseou algumas, destruiu outras e constituiu novas, agora, tão ou mais voláteis que as anteriores; redimensionou o significado da narração, como parte da recomposição de vidas fragmentadas. É um pouco desse mundo em metamorfose que aparece na voz lírica de Carlos Drummond de Andrade, em A rosa do povo, sem tornar-se seu único tema, ou ainda, seu tema principal.

Referências

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Notas de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades/34, 2003.
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2002.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _______. Magia e técnica; arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. (Obras Escolhidas I).
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar; a aventura da modernidade. Tradução de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6.ed. São Paulo: Cultrix, 1992.

WATT, Ian. Realismo e forma romanesca. In: BARTHES, Roland et alii. Literatura e realidade. Lisboa: Dom Quixote, 1984.

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