O Turista Aprendiz: desafios da crônica de Mário de Andrade
O Turista Aprendiz:
desafios da crônica de Mário de Andrade
Júlio
César Suzuki
Mário de Andrade, um dos grandes escritores
brasileiros, à busca de sua brasilidade, deixou-nos uma obra imensa e diversa,
em que poesia, conto e romance se misturam a livros importantes sobre cultura
nacional, discutindo música, folclore, para os quais se valeu de ampla pesquisa
de gabinete e em campo.
Além de toda a variedade de gêneros e temas já
referenciada, ainda inscreve-se a crônica como uma de suas possibilidades de
expressão, sendo O Turista Aprendiz uma coletânea das mais importantes
do artista.
Marcado por duas grandes viagens etnográficas, O
Turista Aprendiz é, também, um percurso subjetivo do narrador que preenche
os textos com recortes do mundo pelo qual trafega, construindo-o ao sabor de
sua solitária conquista. O percurso e o mundo vão se fazendo na viagem. A mesma
da escritura das crônicas que compõem a obra, reunidas em forma de diário,
definido como gênero híbrido, em que se mesclam o real e o ficcional.
Assim, a crônica é um gênero literário que permite
trazer à tona questões, sensações, representações do cotidiano, entendido como
banal, inexpressivo. É o que se pode identificar da discussão de Antonio
Candido (1992, p. 13-14):
“Por
meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem
necessidade que constuma assumir, ela [a crônica] se ajusta à sensibilidade de
todo dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao
nosso modo de ser mais natural. Na sua desprentensão, humaniza; e desta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão
uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de
repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição
[...]”.
Perfeição que, de modo geral, não permite à crônica
alçar o voo de “gênero maior” (CANDIDO, 1992, p. 13), mas, mesmo assim, o
gênero tem alcançado grande prestígio, resultante da presença da oralidade na
escrita.
As crônicas de Mário de Andrade, marcadas pelo
“ritmo falado” (CANDIDO, 1992, p. 17), são aquelas feitas para ficar. Quase um
século após sua escritura, ainda permanecem interessantes para leitura e
discussão.
A crônica, então, está prenhe do seu tempo, bem
como marcada pelos sentidos do seu autor: “A crônica, a partir da própria
etimologia da palavra, guarda a ideia de tempo em seu seio. Porém, de tempo
filtrado pelo modo de ver, de sentir, do cronista de jornal [...]” (LOPEZ,
1992, p. 166-167). No entanto, é necessário dizer que a voz narrativa da
crônica não é mais a do autor, mas a de um sujeito ficcional, mesmo que mediações
fortes entre autor e sujeito ficcional possam ser encontradas.
O
Turista Aprendiz, em edição organizada por Telê Porto Ancona Lopez, está dividido em
duas partes. A primeira, intitulada O turista aprendiz: viagens pelo
Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega,
é referente à viagem cujo período se estabelece de 7 de maio de 1927, quando
Mário de Andrade parte, de São Paulo em direção ao Rio de Janeiro, para
embarcar no vapor Pedro I, até 15 de agosto de 1927, sendo que o início do
percurso, a partir da capital carioca, se deu em 13 de maio de 1927 (LOPEZ,
1983a, p. 18).
Para esta viagem, estava programada a companhia de
Paulo Prado, Afonso de Taunay, Olívia Guedes Penteado e outra pessoa. No
entanto, Mário de Andrade, ao embarcar, encontra apenas Dona Olívia e sua
sobrinha, Margarida Guedes Nogueira (Mag) e a filha de Tarsila do Amaral, Dulce
do Amaral Pinto (Dolur), situação que o deixa constrangido por ser o único
homem do grupo.
Já a segunda parte, intitulada O turista
aprendiz: viagem etnográfica, refere-se à viagem ao Nordeste do Brasil de
27 de novembro de 1928, quando parte de São Paulo, até fevereiro de 1929 (cuja
data limite não aparece na apresentação de Telê Porto Ancona Lopez).
No desenvolvimento da
crônica, a voz narrativa humaniza a si e aos outros, bem como nos dá a conhecer
um pouco das atividades desenvolvidas pelo sujeito que enuncia.
A descrição não é
pormenorizada. São apenas os principais marcos identificados. Principais para
quem? Para o sujeito da narração, que pinta um quadro com pinceladas densas e
fortes, mas sem a pretensão de constituir o padrão tão caro às necessidades do
Renascimento e da sua natureza-morta. É o que se percebe no trecho que segue da
crônica “16 de junho”, em que o colorido, o calor e os ruídos vão compondo a
paisagem capturada pelo narrador.
“[...]
Um casal de araras atravessa o rio. Bandos de borboletas amarelas na pele do
rio. Derepente [sic] uma azul, das grandes. Libélulas em quantidade. E
os peixes saltassaltando nos remansos. E a quantidade de jaós, não se caça jaó
por aqui? Me chamam no pio, lhes respondo, e passo horas nestes amores sem
espingarda, enquanto os matos passam rente e terras mais inquietas. O lugarejo
lindo de Maturá dá pra fazer alpinismo. Dia de calor famoso [...]. Noite
sublime de lua-cheia. As gaivotas que descem nos paus boiando, acordam com o
arfar do vaticano e só vendo o barulhão que fazem [...]” (ANDRADE, 1983, p.
102-103).
A descrição que
transforma o espaço em paisagem, capturada pelo olhar que recorta o mundo, o
que nos “[...] remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e
atesta a cada passo nesta ação [de olhar] a espessura da sua interioridade
[...]”, superando o simples ato de ver, em que se “[...] conota no vidente uma
certa discrição e passividade ou, ao menos, alguma reserva [...]” (CARDOSO,
1995, p. 348). Cabe, aqui, lembrar que o dito popular dá
sentido inverso aos termos “ver” e “olhar” postos por Sérgio Cardoso, já que se
diz: “Olhou mas não viu”.
Esses são apenas uns poucos
exemplos da densidade das tintas utilizadas nas descrições constantes nas
crônicas de
Em O Turista
Aprendiz, as tintas são extremamente densas na composição das paisagens,
ultrapassando os sentidos da visão; dão-nos o cheiro, o som. São descrições extremamente
sinestésicas.
O ponto de vista do
narrador, às vezes é a do estrangeiro, às vezes é a do que é visto como
estrangeiro, às vezes é o estrangeiro que se entrelaça na trama da narração.
As crônicas, ainda,
além das descrições e narrações, estão marcadas por digressões, rompendo o
discurso principal do narrador que nos conta uma viagem inusitada, fantástica e
fantasiosa: real e ficção. A crônica “21 de maio” possui um momento ímpar de
digressão, pois o significado é metalinguístico, já que o procedimento da
escrita está sendo indicado, por mais que somente em suas linhas muito gerais.
“[...]
Estas notas de diário são sínteses absurdas, apenas pra uso pessoal, jogadas
num anuariozinho de bolso, me dado no Loide Brasileiro, que só tem cinco linhas
pra cada dia. As literalices são jogadas noutro caderninho em branco, em papéis
de cartas, costas de contas, margens de jornais, qualquer coisa serve. Jogadas.
Sem o menor cuidado. Veremos o que se pode fazer disso em São Paulo” (ANDRADE,
1983, p. 64).
As crônicas de O
Turista Aprendiz são marcadas pelo uso do espaço, em que a descrição, a
narração e a digressão, como mediações da escritura, permitem, na viagem,
compor quadros curtos, mas densos, cujos coloridos se mesclam aos ruídos,
odores, temperaturas. Sensações múltiplas vão delineando as paisagens culturais
em que se insere o sujeito que narra o percurso de viagem. O espaço está, em O
Turista Aprendiz, impregnado de cultura, sensações; conformando um olhar
peculiar e único, o do narrador, deslumbrado pela descoberta do Brasil para
muito além do que a Ciência tinha dado conta de revelar nas poucas obras já
escritas antes da institucionalização da Geografia e da universidade
brasileiras.
Sérgio Cardoso (1995,
p. 358-359) afirma com contundência o quanto “[...] as viagens revelam
inequívoco parentesco com a atividade do olhar [...]”, marcadas que são pela
“exploração da alteridade”, tal foi possível explicitar em nossa análise que
“[...] as viagens sejam sempre experiências de estranhamento [...]”.
Particularmente, as
viagens de Mário de Andrade são sempre o encontro com o Outro, aquele que
instiga o desvendamento e a compreensão da alteridade, da diferença; em que
pese a menção àquela que deu origem à busca de conhecimento do Brasil, a viagem
de 1924.
Assim, as viagens à
Amazônia e ao Nordeste são a continuidade de um projeto de compreensão do
Brasil e de deciframento da brasilidade cultural do país de que faz parte O
Turista Aprendiz, cujas crônicas alcançam a potência de desafiar o relato
duro da descrição física dos lugares, permitindo a construção das paisagens,
com tudo que a sinestesia da linguagem poética poderia nos dar.
As crônicas de O
Turista Aprendiz, então, aparentemente não falando de nada, permitem
aprofundar a compreensão do espaço, das paisagens e do humano no Brasil dos
finais dos anos 1920, em sua diversidade histórica, para além do que os olhos
banais possam ver.
As impressões do
viajante, recuperando as ações humanas e os tempos presentes nas paisagens, vão
delineando contornos importantes para a compreensão de um Brasil do início do
século XX, marcado por enormes contradições, em que o tradicional e o moderno
já constituíam marcas da modernidade anômala de que nos fala José de Souza
Martins (2000, p. 50), em A sociabilidade do homem simples, marcada pelo
duplo entre o ser e o do parecer ser, bem como pela dimensão do colonizado e do
colonizador.
São as marcas do
Brasil cindido, híbrido e fragmentário que permeiam as impressionantes crônicas
de O Turista Aprendiz, em que tempos se acumulam nos coloridos das
paisagens delineadas pelo seu narrador, o que nos permite ponderar sobre a
relevância da sua leitura para a construção de uma interpretação de um Brasil
anterior à institucionalização da Geografia universitária.
Referências
ANDRADE, Mário de. O
turista aprendiz. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: SETOR de
filologia da FCRB (Org.). A crônica;
o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, 1992.
p. 13-22.
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In:
NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 347-360.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. “Viagens etnográficas” de Mário
de Andrade. In: ANDRADE, Mário de. O
turista aprendiz. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1983a. p. 15-23.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. A crônica de Mário de Andrade:
impressões que historiam. In: SETOR de filologia da FCRB (Org.). A crônica; o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. Campinas: Unicamp, 1992. p. 165-188.
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples; cotidiano e história na
modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000.
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