Os Cordeiros do Abismo: uma expressão da potência do romance goiano contemporâneo

Os Cordeiros do Abismo: uma expressão da potência do romance goiano contemporâneo



Júlio César Suzuki


“A dependência do ser humano em relação ao outro permanece até depois da morte. O amor é uma gaiola que aprisiona nossos sonhos inteiros, restando-nos somente sonhos divididos, vontades divididas. E qualquer iniciativa de se fazer uma opção inteira significa culpa [...]” (RIBEIRO, 2005, p.56)



No contexto da produção literária em Goiás, a publicação do romance de estreia no gênero, de Maria Luísa Ribeiro, não produziu um impacto midiático ou de visibilidade de grande monta. Apesar de celebrado pela crítica nacional, é um livro mais temido do que lido. Porém, mereceu de Olival (2009), em O espaço da Crítica III, um capítulo específico intitulado A escritura da transgressão: Os cordeiros do abismo, publicado pela Editora UFG. Nele, a ensaísta observa que a escritora “[...] parece acompanhar uma tendência que mais vigorosamente se manifesta na literatura brasileira feita em Goiás pós - 1990: a de enveredar pelas pulsações marginais latentes no ser humano [...]” (OLIVAL, 2009, p.246).
Maria Luísa Ribeiro, nascida em 18 de junho de 1955, em Goiânia (Goiás, Brasil), é graduada em Direito, pela Universidade Católica de Goiás, com uma especialização em Processo Penal; e em Letras, pela Universidade Federal de Goiás. (BUENO, 2012).
Sua trajetória acadêmica é muito importante para constituir a base sobre a qual a escritora constrói a trama de Os Cordeiros do Abismo, tendo em vista os elementos jurídicos necessários à estruturação das relações estabelecidas entre as personagens e a riqueza de linguagem, marcada pelo uso de metáforas, frases simples, sobreposições de tempos cronológicos, diferentes pontos de vista, ações informadas de forma indireta e em momentos distintos da narrativa e diálogo com o leitor. São elementos que dialogam, inclusive, com a tradição, como as obras de Machado de Assis e Clarice Lispector, sobretudo em relação à habilidade do narrador em conduzir o leitor na criação de vínculos entre as informações que fornece. No entanto, o diálogo com a tradição não é sem inovações, particularmente no que se refere à maneira de construir as relações entre as personagens, em que a presença de três tempos cronológicos (presente, passado e passado anterior) mediam as informações sobre cada uma delas, adensando a compreensão de seus significados na estruturação da trama.
Sobre o narrador, em terceira pessoa, é possível interpretá-lo como outra face, mesmo, de Leopoldo, cuja voz aparece diretamente em primeira pessoa em diversas passagens do romance, às vezes, sendo difícil diferenciar sua participação da que se pronuncia em terceira pessoa, marcando o uso do discurso indireto livre. É como se Leopoldo, falando de si em terceira pessoa, procurasse revelar o pouco de humano que há por detrás de todas as atrocidades que realiza.
A riqueza da linguagem também é marcada pela utilização de formas coloquiais, de expressões novas e pelo uso de diálogo entre as personagens sem o uso do travessão, tão tradicional em construções dialógicas em prosa; assim, há, inclusive, uma aproximação muito expressiva com a poesia.
A trama e a linguagem contribuem para marcar, também, um mundo fragmentado, dinâmico e veloz que traduz mediações metropolitanas que se podem vivenciar no mundo urbano brasileiro.
Os Cordeiros do Abismo é o primeiro, e até o momento o único, romance de Maria Luísa Ribeiro, cuja produção literária incursiona por uma diversidade de gêneros e públicos, em que podemos encontrar poesia (O tempo não responde, 1988; Além do Alambrado, 1990; O leve Peso da Sombra, 2005; O Pássaro do Bico de Ferro, 2010) ; estórias para crianças (Veneno da Lagartixa, 2000; Gata, gata, Gatarina, 2001; O Anjinho que falava palavrão, 2001; Nave Pensamento, 2009) ; e contos (O Senhor dos Desencontros, 2001; O Domador do Rio, 2003).
O enredo, em perspectiva geral, apresenta-se como extremamente banal, pois se refere, sobretudo, à vida rotineira de Leopoldo Dornellas, cujas atividades de trabalho e domésticas são bastante repetitivas. Um homem bonito, elegante, citadino, casado e graduado em filosofia, além de duas formações incompletas em Direito e Arquitetura e complementar de detetive.
Eulália, sua formosa esposa, possui fascínio peculiar por chapéus oriundos de Paris, bem como por perfumes franceses. Em diversas viagens à França, abastecia e reabastecia sua coleção com outros chapéus e novos frascos de perfumes.
O casamento de Eulália e Leopoldo não resultou em filhos, mas era aparentemente uma união feliz, estabelecida na habitação onde sempre residiu Leopoldo, cuja mãe, Tarsila Dornellas, também, mora na casa.
Aristides Dornellas, pai de Leopoldo, desde o início da trama já havia se suicidado por conta do drama pessoal de não suportar o adultério da esposa.
Com a morte do pai, Leopoldo se torna escrivão, cuja rotina é marcada não só pela frequência ao Cartório do Crime, situado à Avenida Dias da Cruz, mas, também, por ir, com sua esposa, todas as quartas-feiras à Igreja e ao cinema.
A cartografia da espacialidade do romance Os Cordeiros do Abismo revela que não há demarcadores temporais consistentes, e sim sequências espaciais por meio das travessas, por onde se movimenta Leopoldo. O demarcador cronológico é apenas a quarta-feira, dia em que ocorre o devaneio de Leopoldo no cartório, que coincide com o único dia da semana em que ele sai com sua mulher, Eulália, para irem à igreja. O narrador denomina esse dia de “dia da expiação” de Leopoldo.
É justamente numa quarta-feira que Eulália se suicida, motivo pelo qual o enredo ganha desenvoltura. Há ainda outra referência cronológica, sobre o dia do suicídio de Aristides, pai de Leopoldo (06 de agosto), que parece servir apenas para alimentar a memória do protagonista sobre o momento exato do tiro que o vitimou. Fora isso, ocorre uma sucessão de dias não identificados cronologicamente, em que Leopoldo atua em sua via crucis de expiação, constituindo a segunda parte do romance: “O retorno”.
Ainda que o romance não comece em flashback; a primeira parte é marcada por lembranças, enquanto que a segunda ocorre em tempo real, já que é anunciada, antes, a queda dos processos, e somente no início da segunda parte o leitor tomará conhecimento de que esteve diante da narração das reminiscências da personagem, quando o narrador revela que Leopoldo ficou por [...] seguidas horas na mesma posição, sentado no piso, encostado na parede, fixo na transparência da janela, descendo aos porões e revigorando o que ficara acomodado nos arquivos (RIBEIRO, 2005, p.97).
No curto período de perda de consciência do protagonista, sentado ao chão do cartório e encostado na parede, foi narrada toda a extensão da existência de Leopoldo: sua infância no cartório, seus traumas, sua formação, seu casamento, o suicídio do pai, a relação neurótica com a mãe e, principalmente, suas perversões, os crimes de estupro e incesto. Essa analepse interna prepara o leitor para a segunda parte do livro, quando se dá o desenvolvimento das ações em seu tempo presente. A importância dessa ocorrência reside no fato de que nos levará ao encontro da subjetividade do protagonista, pois sua narrativa focada no espaço mental revela um sujeito descentrado, profundamente narcísico e em crise consigo mesmo. Não são o dinheiro, o sucesso, nem o trabalho que mobilizam a personagem, mas seus dramas psicológicos ligados à perturbadora relação de carência afetiva com a mãe e a sua compulsão sexual pervertida, pois, apesar de uma incrível vida normal e regular, Leopoldo vive um grande drama pessoal de sentir prazer ao se masturbar olhando fotografias de cadáveres presentes nos processos arquivados do Cartório do Crime, sendo extremamente frequentes as suas noites de atividade sexual estimulada pelas fotos dos mortos, depois da saída dos empregados do cartório.
O começo do contato sexual com as fotografias se iniciou na juventude de Leopoldo, quando ele se masturbava todos os dias olhando as imagens dos processos no banheiro do cartório ou suas fotocópias levadas com ele para sua casa. O segundo momento de sua perturbação inicia-se com a interiorização dos mortos presentes nos processos, quando ele realiza uma espécie de devir ao incorporar a identidade da pessoa morta, e vai em busca de encontros sexuais com suas mulheres e seus homens, bem como com uma jovem virgem.
A representação da cidade criada pelo narrador e construída pelos trajetos de Leopoldo é somente uma possibilidade de apropriação da cidade. É um espaço transformado pela escritura em que sua representação é conduzida pela personagem principal, bem como a percepção deste espaço é modificada pelo leitor. Assim, as relações entre o real e o literário têm lugar : as cidades reais brasileiras e a cidade representada e imaginada por Leopoldo.
Vale a pena, ainda, dizer que o espaço urbano construído por Leopoldo pode ser somente um espaço completamente imaginado, tendo em vista que é possível que toda a trama não seja mais que um de seus sonhos, aliás, um sonho surrealista em que estão presentes relações sexuais, incesto, estupro, amor, ódio pela mãe, bem como três assassinatos finais.
Desta maneira, o espaço vivido por Leopoldo seria um espaço totalmente imaginado em que as contradições e contravenções seriam apenas sonhos de um escrivão que possui somente seu trabalho, sua espaço e sua rotina, semelhante a outros habitantes das cidades em geral, o que conduziria para a interpretação de que a cidade presente no romance é totalmente marcada por uma cartografia extremamente subjetiva : os trajetos de Leopoldo, ou imaginados ou reais.
Assim, o romance de Maria Luísa Ribeiro abre inúmeras possibilidades interpretativas, com uma riqueza de linguagem e de enredo que nos somente começamos a aprofundar a análise a partir das reflexões de Olival (2009), Bueno (2012) e Lima (2013).
As perspectivas de análise são, assim, infinitas, tendo em vista se constituir em importante obra da literatura brasileira, por mais que tão pouco lida e analisada, o que nos convida a continuar a ler e a reler suas entrelinhas para melhor compreender os segredos escondidos na obra e poder estabelecer novas relações entre os seus elementos, contribuindo em termos geográficos para o aprofundamento do debate acerca da dimensão espacial das relações sociais mediatizadas pelo imaginário e pela representação.


Referências


BUENO, Marcos. “A arte de escrever, com a palavra o Escritor”; As vivências dos escritores literários em relação ao seu trabalho: uma abordagem psicodinámica. 2012. 366f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica – GO, Goiânia, 2012.
LIMA, Angelita Pereira de. Romancidade; sujeito e existência em leituras geográfico-literárias nos romances A centopeia de neon e Os Cordeiros do Abismo. 2013. 235f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás – GO, Goiânia, 2013.
OLIVAL, Moema de Castro e Silva. O espaço da crítica III. Goiânia: UFG, 2009.
RIBEIRO, Maria Luísa. Além do Alambrado. Goiânia: Kelps, 1990.
RIBEIRO, Maria Luísa. Gata, gata, Gatarina. Goiânia: Grafopel, 2001.
RIBEIRO, Maria Luísa. Nave Pensamento. Goiânia: R&F, 2009.
RIBEIRO, Maria Luísa. O Anjinho que falava palavrão. Goiânia: Grafopel, 2001.
RIBEIRO, Maria Luísa. O Domador do Rio. Goiânia: Kelps, 2003.
RIBEIRO, Maria Luísa. O Leve Peso da Sombra. Goiânia: Kelps/UGC, 2005.
RIBEIRO, Maria Luísa. O Pássaro do Bico de Ferro. Goiânia: R&F, 2010.
RIBEIRO, Maria Luísa. O Senhor dos Desencontros. Goiânia: Kelps, 2001.
RIBEIRO, Maria Luísa. Os Cordeiros do Abismo. 2.ed. Goiânia: R&F, 2005 [2004].
RIBEIRO, M. L., O tempo não responde, Goiânia : Kelps, 1988.

RIBEIRO, M. L., Veneno da Lagartixa, Goiânia : Grafopel, 2000.

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